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terça-feira, maio 18, 2010

"68 Ainda Vive... Eu Prefiro 69"

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Como escrevi aqui nesta mesma tela há alguns dias, a última edição da revista +Soma traz uma matéria minha sobre o Diego de Moraes, e agora que o periódico já saiu e percorre as mãos de distintos leitores em todo o Brasil, reproduzo a íntegra do texto também para a ilustre audiência do goiânia rock news. Siga a letra:


Fotos (tanto na revista quanto neste post):
Eduardo Vieira - By Photos


Diego de Moraes
"Anjo Exterminado"



Pelos versos de Camões
Pelo traço de Robert Crumb
Pra quem já leu Grandes Sertões
Pra Bob Marley e pra quem quer que fume

Pelas barbas do profeta
Cada um que trace sua meta


“Pelas Barbas” – Diego de Moraes


Prestes a lançar seu primeiro disco, Parte de Nós,
Diego de Moraes ainda atropela as palavras para
dissertar sobre sua curta carreira, num discurso tão
urgente quanto articulado. A seu lado, numa das mesas
do bar recentemente adotado pela nova boemia cultural
de Goiânia, está Gabiras, percussionista d’O Sindicato –
sua
banda de apoio, que pontua a verborragia frenética do
colega
com fôlegos explicativos que escapam calmamente
entre bafejos
de fumaça e goles de cerveja.



Diego de Moraes nasceu em Cuiabá, mas a cidade que acolheu as primeiras manifestações de sua inquietude musical foi Senador Canedo, distante cerca de 20 km da capital de Goiás. Começou tocando bateria em bandas de orientação punk-rock, cujos nomes – The Cretinos e Leigos, já sugeriam os rudimentos da futura mordacidade lírica. Depois de cumprir os protocolos de principiante (o que, é claro, incluiu covers de Nirvana e Ramones), Diego descobriu que sua ambição artística ia muito além, e decidiu assumi-la sozinho e em cadência nacional.


Os primeiros shows em Goiânia foram acompanhados tão somente por um violão e, vez ou outra, pela irmã (então com 13 anos) na bateria. E foi assim, numa espécie de versão cínica, acústica e bronzeada do White Stripes, que Diego chamou a atenção da cidade para sua música aflita, ao mesmo tempo conectada à iconoclastia pré-punk dos Stooges e à tradição torta dos gênios malditos da mpb: sem guitarra nem distorção, em 2006 Diego vence o Tacabocanocd, festival competitivo majoritariamente de rock, e leva como prêmio a gravação de seu primeiro EP.


Ainda em 2006 foi destaque em festivais de música popular, estabelecendo uma tímida e ainda involuntária ponte entre dois mundos vizinhos, mas praticamente isolados um do outro. Nesse ínterim, talvez vítima da simplificação preguiçosa que enxerga folk em qualquer violão metido no rock, parte da imprensa se apressou em atribuir a etiqueta às canções do então bardo punk, o que rendeu uma resposta tão lacônica e precisa quanto haviam sido rasas as primeiras análises de sua música: “Não é folk, é fuck you!”




Em 2007 lança Reticências..., o EP-prêmio, primeiro registro com guitarra, baixo e bateria, que escancara a provocação, ironizando a preferência do rock local pelo idioma dos Beatles:


Vou começar pedindo desculpa / Peço desculpa, não é sua culpa /
Sei que não é a preferência de vocês / Estou aqui com a minha deficiência outra vez / Mas infelizmente eu ainda não sei falar inglês/ I don’t know / Então o jeito vai ser cantar assim mesmo em português / Sim senhor!



De lá pra cá Diego de Moraes foi reclassificado, e vestido de neotropicalista percorreu o circuito de festivais independentes, ganhando lastro fora de casa com apresentações cuja intensidade e franqueza cênica parecem ter a mesma importância do repertório.


Sentado à mesa do boteco, atrás de um copo de cerveja pela metade, sua fala parece custar a acompanhar seu raciocínio, que dando voltas atávicas na própria biografia revela uma personalidade bem mais complexa do que sua figura franzina sugere. Quando pergunto qual a importância da política em sua obra, Diego mistura Maiakovski com Roberto Campos para explicar que “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária.”, e em seguida ironizar até as próprias convicções, citando o economista conservador: “O esquerdista é um capitalista canhoto”!


Mas apesar da autoironia que disfarça a homilia esquerdista com um véu de sarcasmo, nesse terreno arenoso Diego escapou por pouco ao clichê. No começo de sua carreira não era difícil enxergar certa carga ideológica, traduzida em lembretes insistentes de sua condição de proletário (nessa época, o músico amargava oito horas diárias num call center), e de que antes de ser aclamado como revelação local, não tinha dinheiro sequer para pagar os ingressos dos festivais que logo passaria a freqüentar como atração, em horário nobre.


Porém, aparentemente ainda envolvido pelo mesmo ideário, Diego soube resistir ao discurso pronto e às palavras de ordem, substituindo slogans vencidos por uma visão tão desconfiada quanto crítica, desprezando sectarismos e renovando suas convicções políticas num filtro tão cáustico quanto incomodado.

Também pudera. Depois de se associar ao que, em Goiânia, foi batizado de hard-rock-setor-Bueno (em referência à enormidade de bandas de rock nas regiões mais nobres da capital), um novo horizonte se abriu e aparentemente convenceu o rapaz de que as coisas nunca haviam sido tão pretas ou brancas: a predominância de tons de cinza provou que, pelo menos na música, seu talento valia muito mais que seu salário.




E ao descobrir que seu ímpeto artístico ultrapassava a parceria com O Sindicato, estabelecida logo depois do festival Tacabocanocd, Diego desdobrou-se em uma série de projetos paralelos, cuja única semelhança era sua declarada efemeridade: regeu a meteórica carreira do Filhos de Maria, enfrentou narizes torcidos como metade da dupla caipira Waldi & Redson, e agora (ou pelo menos até o fechamento da edição) desliza uma espécie de psicodelia agreste com o Pó de Ser, endereçando alusões abstratas ao clássico Paebirú, de Zé Ramalho e Lula Cortês.


Mas a despeito das atividades “extracurriculares”, Diego nunca se desviou do foco. E hoje, depois de pedir mais uma cerveja ao garçom, segue falando de seu primeiro disco com a sofreguidão de quem aguarda, de charuto na mão, notícias do nascimento de um filho. Já admite certa inclinação folk (ainda que a diluição dos elementos não permita uma identificação tão objetiva), e aproveita a deixa para estabelecer conexões entre o blues, o folk e o country norte-americanos e a tradição sertaneja brasileira, manifestada nos ritmos nordestinos e nas modas de viola: “Imagina que loucura se o Tião Carreiro se encontrasse com o Johnny Cash, cara!”.


Ao mesmo tempo, se distancia da estética punk óbvia, relegando essa função à postura e ao discurso: em “Animal”, que conta com participação do tecladista Astronauta Pinguim, chega a citar textualmente “I Wanna Be Your Dog”, dos Stooges.




E apesar de tudo, Diego e Gabiras também recusam o selo “MPB”, descartando a chancela em nome da liberdade estilística, e para manter uma distância segura de uma turma que parece perdida no tempo:


O lance é que o pessoal da mpb em Goiânia quer fazer... mpb. Mas isso aí acaba soando como o pior disco do Ivan Lins nos anos 80. Pegam os piores timbres, tentam fazer uma coisa altamente formalizada... e nunca dá certo! (risos)


E enquanto ouve que parte do público insiste em associá-lo a Raul Seixas, e a imprensa persevera em lhe atribuir influências tropicalistas, Diego de Moraes seca o último gole de cerveja no copo americano antes de cravar, encerrando o papo:


Dá pra dizer que as minhas fontes de inspiração de hoje, são
Walter Franco, The Who e Bob Dylan. Mas como diz uma música
do disco: Eu me enganei quando pensei que eu era eu / Eu sou parte de nós!




Um comentário:

Poizentão disse...

arrasou na gramática, higao! ótimo texto, muito fluido!